Novela Aduaneira Natal
Miguel Torga in «Novos Contos da Montanha»
16 de dezembro, 2017
“Viola” de Contrabando – viola de cordas com caixa metálica utilizada para contrabando de azeite entre Portugal e Espanha durante a II Guerra Mundial. Alfândega do Porto - Exposição “Metamorfose de um Lugar: Museu das Alfândegas
1993 aboliu FRONTEIRA, raiana, nos mapas da nova geografia fiscal. Mas FRONTEIRA eterniza-se no tempo do seu eterno humanismo…
FRONTEIRA
“Quando a noite desce e sepulta dentro do manto o perfil austero do castelo de Fuentes, Fronteira desperta. (…)
A Isabel, sempre com aquele ar de quem vai lavar os cueiros de um filho, sai quando o relógio de Fuentes, longe e soturnamente, bate as onze. (…)
Quando algum não regressa, e por lá fica varado pela bala de uma lei que Fronteira não pode compreender, o coração da aldeia estremece, mas não hesita. Desde que o mundo é mundo que toda a gente ali governa a vida na lavoura que a terra permite. E, com luto na alma ou no casaco, mal a noite escurece, continua a faina. A vida está acima das desgraças e dos códigos. (…) E se por acaso se juntam na venda do Inácio uns e outros – guardas e contrabandistas -, fala-se honradamente da melhor maneira de ganhar o pão: se por conta do Estado a vigiar o ribeiro, se por conta da Vida a passar o ribeiro. (…)
Desses saltos no quotidiano de Fronteira, o pior foi o que se deu com a vinda do Robalo. (…)
Além disso, novo no ofício – na guarda, para onde entrara em nome dessa mesma terrosa realidade: um ordenado certo e a reforma por inteiro. Daí que lhe parecesse o chão de Fronteira movediço sob os pés. (…)
- Esta gente que faz? – perguntou a um companheiro já maduro no ofício.
- Contrabando.
- Contrabando!? Todos!? E as terras, a agricultura?
- Terras!? Estas penedias?! (…)
Mas nem assim o Robalo entendeu Fronteira e o seu destino. No dia seguinte, pelo ribeiro fora, parecia um cão a guardar. (…)
Mas Fronteira tinha de vencer. Primeiro, porque o coração dos homens, por mais duro que seja, tem sempre um ponto fraco por onde lhe entra a ternura; segundo, porque o Diabo põe e Deus dispõe. (…) E quem havia de lhe entrar pelos olhos dentro ao natural, cobertinha da luz doirada do sol? A Isabel! A rapariga tirava a respiração a um mortal. (…)
- Gosto muito de ti, tudo o mais, mas se te encontro a passar carga e não paras, atiro como a outro qualquer.
A Isabel riu-se.
- Palavra?!
- Palavra.
- A mim?!!!
- A minha mãe, que fosse… (…)
E até ao Natal a vida foi deslizando assim.
Na noite de Consoada, porém, aconteceu o que já se esperava. Parte da guarnição tinha ido de licença. Todos se chegavam ao calor da lareira familiar, saudosos de paz e harmonia. Mas o Robalo ficara firme no seu posto. (…)
- Alto!
Uma voz cansada entrou-lhe no coração.
- Sou eu…
- Tu?!
- Sou. Mas nem trago contrabando, nem me posso demorar.
- Tu?!
- Eu mesmo. E já disse que não trago contrabando, nem me posso demorar. (…)
- Não berres, que não vale a pena. Este volume todo – é gente. A intenção era boa, era… Mas de repente, em Fuentes, começam-se a apertar as dores… Se não me apego às pernas com quanta alma tinha, nascia-me o rapaz galego. Querias?
O coração do Robalo não aguentava tanto. Um filho! Um filho seu no ventre de uma contrabandista! (…)
E, quando o dia rompeu, Fronteira tinha de todo ganho a partida. Demitido, o Robalo juntou-se com a rapariga. Ora como a lavoura de Fronteira não é outra, e a boca aperta, que remédio senão entrar na lei da terra! Contrabandista.
E aí começam ambos a trabalhar, ele em armas de fogo, que vai buscar a Vigo, e ela em cortes de seda, que esconde debaixo da camisa, enrolados à cinta, de tal maneira que já ninguém sabe ao certo quando atravessa o ribeiro grávida a valer ou prenha de mercadoria.”
Miguel Torga in «Novos Contos da Montanha», adaptado de texto publicado na “Alfândega – Revista Aduaneira”, nº 27/28, 1992